Marilda não era legal

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Marilda não tomava café, e pra sua sorte não permitiam uma garrafa na redação.

Isso significava que a estagiária ali não precisava levantar de hora em hora pra abastecer as xícaras do pessoal. O ambiente era novo, tudo muito claro, muito vidro… era o aquário. Coisa nova pra ela. Ainda nem tinha login no computador.

Certo dia, num dos primeiros no novo estágio. Teve que ir pra rua. Esperava há muito tempo pelo desejado chamado pra fora. E foi. Pauta cultural. Pegou a câmera, dividiu o carro com outra repórter e segurava a câmera rumo ao centro. Foi então que percebeu que não importava o horário, quando se quer chegar rápido carros aparecem por geração espontânea no meio das ruas. Acabara de ver um Fiat Uno nascer no meio da avenida Brastempo, do nada.

Trânsito caótico, tamanho 8h40.

Chegou lá, pegou as entrevistas. Meio cultural, conhecia os envolvidos. Fácil. Entrevistou o idealista do projeto, uma ajudante, os alunos. Correu pra tirar as fotos de um protesto que acontecia perto de onde estava, ligou pra outra repórter e riu por ela estar lanchando bem na hora da ação. Jornalistas e sua fome infinita.

Conferiu as entrevistas, se deu por satisfeita. Mas faltava o outro lado, se estava na rua tinha que ter o povo, quem passava e interagia com o projeto. Viu duas senhoras olhando curiosas pra estátua do projeto. “Vamos lá Marilda, sem timidez. Faz a personagem ‘jornalista sem-vergonha’, vai!”.

- Boa tarde, eu sou Marilda do “Jornal Central”, vi que a senhora tá aí observando a estátua. O que achou?

- Legal.

Veio até em itálico.

Era a resposta menos esperada e talvez a mais temida. LEGAL? Ficou pensando há quanto tempo não respondia isso pra alguém. Sentiu um soco no meio das ventas. Nos segundos que antecederam as outras perguntas (em vão) para arrancar de Dona Rubiléia alguma reação, passaram mil coisas.

“Será que ela quis dizer que é dentro da lei?”, relembrou a última vez que escreveu legal no sentido de ser bacana. Ah! Foi naqueles cadernos de perguntas do ensino fundamental.

O QUE ACHA DO JUNINHO?

> Legal.

Engoliu como se fosse uma sopa quentíssima, mas de apenas cinco letrinhas.

“Ela não deve ter gostado de mim” – pensou.

“Será que eu tenho cara de jornalista esnobe?” – pensou seriamente.

Depois dos pensamentos, Marilda pensou que de outra forma conseguiria encaixar a moradora do interior do Estado que ficou (apesar de seu vocabulário não constatar) aparentemente impressionada com as estátuas. Tentou tirar uma foto e foi impedida. Dona Rubi, a entrevistada íntima mas sem nenhuma intimidade além da cabeça da repórter, foi um personagem bom mas limitado.

Chegando na redação, escreveu a matéria com todo amor e carinho. Desceu pro almoço e contou entre garfadas num bife e goles de suco de abacaxi doce, o seu causo para o colega Amadeu.

Amadeu disse que também já tinha sido apunhalado assim por um entrevistado, quase saiu chorando da entrevista, mas lembrou de seus culhões. Foi forte e ainda consegui arrancar um “Demais!”.

LEGAL DEMAIS.

Mas não é só de “Legais” que morre o mundo jornalísticos. Temos Okays, acho que sim/não, num sei… Amadeu contou que até nas enormes filas de bancos calourentos, um cidadão descontente pode responder um “tá tudo bem” ou “até que tá bom” como se fosse exatamente isso.

Complica mesmo quando acontece o que aconteceu com a acontecida Marilda. Uma sequência ilegal da tal palavra. Mais ou menos três entrevistados sem quase falar nada além disso.

Marilda se agarrou no dicionário quando chegou em casa, parecia um crente desiludido. Segurou-se firme e disse que sairia dessa.

“Ai Aurélio, porque me abandonaste?”.

Decidiu se acalmar. Afinal, amanhã é outro dia e você pode tentar entrevistar alguém por telefone. Passar por recepcionista, secretária, assessor e quem sabe conseguir falar três minutos com aquele juiz que nunca é entendido por ninguém.

Mas o burocrês já é outra história.

2 comentários:

Fany Dimytria disse...

Pobre Marilda e suas crises existenciais :|

Nanapocket disse...

não vejo como crise existencial. Vejo mais como aqueles desafios inéditos que com o tempo passam a ser coisas corriqueiras e perdem o quê de desafio :)