Grade preta e a luz segurada com a mão

556128_146598575464846_466460779_nVinham duas cenas na cabeça.

Numa estava agarrada à uma grade negra, que era metade de um muro, fugia do monstro que lhe procurava pela noite pra abusar-lhe. Ele a perseguia com os olhos. Ela, criança, com a nudez inocente, corria de um lado pro outro, sem saber para onde ir. Ainda passava em sua mente aquele susto, acordou com a calcinha entre as pernas e um olhar doentio em sua direção.

Ele ia pro portão.

- Tá fugindo do quê?

(um riso maldoso de canto de boca)

- De ti.

Ele ia pra porta.

- Tu num tem como fugir… entra logo.

(ela treme, sente falta de ar devido a asma e tenta não chorar)

- Não vou

E enquanto ele saia do portão para a porta, ela pulou o muro e foi dormir na vizinha, que não negou a morada, a história da criança convenceu… a mãe ia dormir fora – era uma verdade – e ela estava com medo de dormir só.

Mas ela só estava com medo de dormir, com ele por perto.

-

A outra cena era de uns cinco ou seis anos depois.

A vó e os amigos da vó jogavam buraco na mesa, com uma luz arranjada, naquela época o bairro São Francisco era bem mais pobre e tudo era improviso.

Na mesa encontravam-se pessoas que sabiam da história e outras que fingiam não saber.

Ele chegou, sentou e foi convidado a jogar, como se fosse um ser humano digno de algum convite, digno de alguma palavra.

Ela estava confusa, pois fazia tanto tempo e aquela situação de ter que sentar com alguém imundo como ele era tão absurda, que ficou imóvel. Fez umas brincadeiras pra tentar aliviar a tensão… mas quando contou pra sua mãe, ela disse:

- Você nunca mais vai fazer isso, não quero contato, nem você perto dele.

 

Essas são algumas lembranças que ela tenta esquecer, mas que hora ou outra aparecem sem querer. Se pergunta o reflexo que o passado ainda tem no seu presente. Agradece a sua memória fraca e a sorte de nunca mais ter precisado tocar no assunto em casa, embora quisesse um dia querer conversar com alguém… pois toda vez que ouvia histórias parecidas com a sua – foram muitas - as palavras que para outras coisas saíam com facilidade, de repente pareciam coladas na garganta. Pensava se não conseguir conversar sobre era algum sinal, mas afastava pra lá. Fazia tanto tempo….

Imagem:

Tra l'ombra e l'anima

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